Pelas beiradas...
Toca Coming around again – Carly Simon.
Foi uma sensação completamente estranha. Um súbito aperto no peito me levou às lágrimas. Não pude continuar ali. Por lei eu deveria estar faceira por me casar com Iury e realmente estava, mas ao ver Abel beijando outra mulher na minha frente, me desarmou.
Por que isso? Por que a tristeza, meu Deus? Eu não poderia sentir ciúmes... Abel e Fernanda eram solteiros. Tinha minhas dúvidas quanto a ele, mas sabia que Ferzinha merecia ser feliz.
Naquele momento, meus sentimentos se confundiram completamente e eu não consegui voltar para casa. Preferi dirigir noite afora para poder chorar. Não queria ver Fernanda, muito menos Abel. Negava as lágrimas porque não queria aceitar que entre mim e Abel tudo ficou mal resolvido.
-Você assiste ao noticiário e se preocupa com o que eu visto. Isso é sinal de que ainda me ama...
-Eu não amo você... – chorei falando alto comigo mesma – Eu não te amo... Eu não posso mais amar você. Eu sei que você não presta e nunca vai mudar. O Iury sim me ama de verdade, mas existe uma parte de mim que ainda o ama e isso faz com que eu te odeie por não conseguir deixar de te amar...
A pior parte não era nem ter de admitir a mim mesma que estava dividida, mas só conseguir me lembrar dos micos que paguei ao lado de Abel e do quanto ele fazia com que eu me sentisse viva. Chorava e ria ao mesmo tempo. Vivemos cada história e uma delas, em particular, eu conseguia visualizar com exatidão.
Estávamos no supermercado comprando algumas besteirinhas para nos aventurarmos na cozinha. Mais especificamente passeávamos pela fileira dos condimentos quando começou a tocar aquela musiquinha de rodeio. Abel, mais extrovertido, começou a sapatear no corredor. Quem por ali transitava só conseguia passar pelo outro lado e rir.
-Para com isso, Abel. Nunca mais saio com você.
-Que isso, Laly. Vem dançar...
-Nós estamos no mercado, seu doido. – puxou levemente meu braço
-Que olhem... A música é boa e eu vou dançar...
-Nunca mais saio com você.
-Ô Lalinha, que isso...
Eu não sei se aquela era mesmo a coreografia. O refrão ta gravado até hoje na minha cabeça.
-Não te conheço.
Tentando me esconder comecei a andar para trás e ele me seguia sapateando... Até que pisei em falso e caí em cima de uma tenda montada com vidros de pimenta. O piso branquinho e recém limpo foi tingido de vermelho e minha roupa também. Meu cabelo ficou grudento e fedido. Abel, por sua vez, não conseguia parar de rir.
-Culpa tua, seu sem noção.
Ao invés de relembrar o cheiro de pimenta, só conseguia me lembrar do quanto nós nos divertíamos, até mesmo das micagens no karaokê. O curioso era saber que ele nunca se regeneraria e ama-lo mesmo assim. Poderia não ser exatamente amor, mas estava me perturbando.
Som: Ainda lembro – Marisa Monte & Ed Motta.
Chorando, Fernanda abraça Mayra quando elas voltam para casa.
-Ferzinha, que foi?
-Não sei se vou poder continuar com isso.
Mayra se senta ao lado de Fer que deita em seus ombros.
-Não vai ter como disfarçar a vida toda.
-Por isso eu acho melhor que você se abra com a Lalinha de uma vez por todas.
-Ela nunca irá aceitar.
-Abel veio destinado a isso, certo?
-É, mas não sei o que deu nele sair cantando e virar amiguinho do Iury...
-Se eu entendi, ele meio que ta deixando claro que não tem mágoas da Laly e eles não se vêem mais como namorados...
-Você acha mesmo?
-Bom, se bem que vindo dele é melhor desconfiar.
-Por que a gente tem de se apaixonar por caras tão complicados?
-Se eu soubesse, Ferzinha do meu coração, não estava me divorciando de Nilton depois de quase 10 anos de casamento. Mas sabe de uma coisa, amiga?Independente da reação da Laly, recomendo que você abra seu coração com ela, seja honesta quanto ao seu namoro com Abel. Você vai se tranqüilizar quando fizer isso...
-Acho que a partir daí é que os problemas irão começar.
-Relaxa, amiga. Não sofra por antecedência.
Fernanda, desorientada, consegue uma ligação para participar ao vivo do programa da Pastora Constantina.
-E no que posso lhe ajudar, cara Fernanda?
-Preciso fazer uma revelação a minha melhor amiga, mas temo a reação.
Fernanda resume o enredo à pastora, que no fim, diz.
-Vá até uma de nossas congregações mais próximas da sua casa e traga uma peça de roupas desse homem para ungirmos com o santo óleo que acaba com a infidelidade.
Mas nada conforta Fernanda que chora muito no sofá para que Laly não escute os soluços. Gilberto, que acordou para ir ao banheiro, percebe que Fernanda não está bem e vai conversar com ela.
-Problemas, minha filha?
-Não, não, pai. Tudo bem.
Gilberto se senta ao lado de Fernanda.
-Se você estivesse bem não estaria rompendo em prantos. Deus inventou o choro para o homem não explodir. É algo que eu possa ajudar?
-Não sei, pai. Sinto-me estranha falando de amor ao seu lado.
-Estranha por que? Não passei por nada que não vá passar.
-Me meti numa encrenca e não sei exatamente como sair dela, pois se escolher a amizade perderei o amor e se escolher o amor, perderei a amizade.
-Toda escolha nos leva a perder algo. Você só precisa aprender a ver as coisas como elas são e não enxergar apenas o que quer. Eu não coloco muita fé nas palavras desse Abel e me entristeço só por pensar que um paspalho desses pode estar te iludindo a troco de nada, mas se você realmente o ama e não quer mais esconder da Laly, pode sim perder a amizade dela, porém, sofrerá muito mais se continuar se autopunindo e temendo a vida...
Na manhã seguinte...
Laly está tomando café com Gilberto e Lílian. Fernanda parece estar sem apetite.
-Ta levando a dieta a sério demais, Fernanda. Não estou gostando disso. - intervém Gilberto
-Não, pai. Só não estou com muita fome hoje.
-Faz dias que ela mal come. E quando a Fernanda fica sem comer é porque aprontou ou está triste. - dedura Lílian
-Eu?Triste?E por que estaria? - Fernanda tenta disfarçar as olheiras de choro
-Ta com umas olheiras terríveis...
-Não dormi direito.
-Não dormiu porque ficou chorando por causa do baixinho do jornal.
-Que baixinho, Lílian!Pirou?
-Vi você chorando com a Mayra por causa do teu namorado anão.
-Eu nem tenho namorado. - Fernanda enrubesce
-Tem sim e eu vi vocês dois se beijando um dia desses...
Laly cospe o café.
-Lílian, que coisa mais feia ficar espiando os adultos. - Gilberto repreende a neta
-Não to inventando. Foi o que eu vi...
-E mais feio que espionar os outros é fazer fofocas... - discursa Gilberto
-Ninguém me pediu segredo, oras! - Lílian rouba a cena
-Você nem me disse que estava namorando, Fer.
Laly aparenta surpresa com a espontânea revelação de Lílian.
-Laly, a gente tem que conversar.
Fernanda, sufocando o choro, diz e sai da mesa. Lílian e Gilberto se olham.
Toca Missing – Mariana Kupfer.
May e Emília já estão no salão preparando tudo para receber as clientes do dia.
-Nilton passou dos limites ontem, mãe.
-Minha vontade é colocar esse canalha atrás das grades. – Emília confessa
-Temo por Pepo. O pobrezinho diz estar tudo bem, mas eu duvido.
-O visitarei hoje.
-Nilton tentará te impedir.
-Sou tão mãe de Naira quanto sou sua mãe e tenho o pleno direito de visitar minha filha a hora em que eu quiser e não tem homem nesse mundo que me impeça. Comigo o buraco é mais embaixo.
-Só acho que depois de ontem perdi o Pablo pra sempre.
-A menos que Pablo seja um safado interesseiro. Se ele for homem de verdade, volta. Quem tem boas intenções não desiste de primeira. Se ele gostar realmente de você terá de saber a sua história e se não respeitar, o problema é dele.
Som: Como tudo deve ser – Charlie Brown Jr.
A revelação do café da manhã em partes não me surpreendia porque eu já estava bem desconfiada do brilho que o olhar da Ferzinha ostentava.
-Amiga, o que você quer conversar comigo?
-Algo que muito possivelmente pode vir a abalar nossa amizade.
Me sentei no sofá. Qualquer que fosse a revelação, era bom estar preparada. Ou melhor, uma dose de fingimento.
-Eu te contei que fui atriz pornô e você continuou sendo minha amiga mesmo assim. Você sabe que pode confiar em mim pro que der e vier.
-Tem certeza?
-Mais amiga do que você ta sendo, impossível.
Fernanda não era a mesma que sempre me animava. Nunca a havia visto chorar tanto daquele jeito.
-Acreditaria se dissesse que estou apaixonada? - soluçou Fer
-Por quem?
-Ah, ele é lindo, simpático, romântico, inteligente, cavalheiro...
-Ah ah amiga... Ainda acredita em príncipe encantado?
-Sabe que eu acho que ele existe mesmo?
-Acho que essa dieta não ta te fazendo muito bem...
-Acho que nunca estive tão feliz em toda minha vida e nem sequer estou comendo chocolate...
-Quem é ele, amiga?Conta aí... Quero saber quem é o gatchenho que ta deixando minha amiga abobada... Você não é disso!
-A gente se conheceu faz pouco tempo e ta ficando todas as noites. Estão sendo as melhores noites de toda a minha vida. Eu tinha uma imagem dele, mas agora que estou o conhecendo de verdade percebi que fiz julgamento injusto sobre a pessoa dele. Ainda bem que a vida às vezes dá essa oportunidade pra gente saber que nem tudo que parece é.
Eu já estava ficando impaciente. Queria saber quem diabos era ele. Facilmente eu imaginaria um sujeito assim e escreveria romances que bombariam nas livrarias do Brasil todo. Era essa a visão que eu tinha do Abel até aquele maldito jantar...
Só não acreditava que a Fernanda, a mesma que o crucificou e maldisse, agora estava loucamente apaixonada e entrava de olhos fechados nessa roleta-russa de sair com um sujeito que não valia o que comia. Eu não acreditava naquele caô de cartório.
-Por ele, Fer?
-Ainda gosta dele, não é?
Até parece...
-Eu sei que ele pode ter aprontado com você, mas as pessoas também podem mudar, Lalinha. Acredite!
-Ele não é do tipo que vai mudar, Fer. Passei 6 anos com ele e o danado só mudou pra PIOR.
-Mas ele se apaixonou por mim.
-E por mim também... Me jurou céus e terra, mas quando mais precisei dele... Cadê?Tinha outra mulher.
-Agora sou só eu.
-Acredita no caô do baixinho, né?
-Acredito.
Fernanda estava mesmo apaixonada pelo cafajeste.
-Ele me jurou de pés juntos que terminou com ela...
-Se ele não terminou nos seis anos que ficamos juntos, agora é que não termina mesmo...
-Será que a gente não pode acreditar nele, Laly?Ele ta me jurando que é só uma questão de tempo por causa da burocracia que envolve o divórcio, sabe...
-Olha Fernanda, eu sabia que você tava carente, mas não tanto.
O cupido da Fernanda devia ser processado por falsidade ideológica e danos morais.
Som: Never can say goodbye – Jackson 5.
Gilberto reúne Cybele, as crianças, Laly e Fernanda para almoçar em um restaurante onde resolve contar a todos que o casal trocará alianças no fim de semana.
-Irão mesmo se casar? – Laly pergunta
-No fim de semana. – responde Cybele
-Que maneiro, pai!Que o senhor seja muito feliz ao lado de Cybele. Quero as meninas como damas e Pepo e Rafa como pajens. – Fer avisa
-Pepo não vai poder ir. – Lílian conta
-E por que não?Pepo é da família.
-O gordo idiota, quer dizer, o Nilton não o deixa sair. Pergunta pro Rafa como é verdade.
-A sardentinha tem razão, tio.
-Do que me chamou, ameba? – Lílian grita com força
-Sardentinha. – Rafa provoca
-Só não te dou um soco porque estamos em um lugar civilizado, mas deixa só eu sair daqui pra você ver só...
Gilberto não perde o jeito turrão de ser e briga com Lílian na mesa. Abel está apresentando o noticiário.
-Olha os modos, senhorita Lílian Gallardo. Se não quiser ficar de castigo, comporte-se.
Som: Flores (acústico) – Titãs & Marisa Monte.
Gustavo faz relatório completo a Eleonora sobre a evolução dos planos.
-O baixinho safado ta traçando a amiga da Laly.
-A tal Fernanda, não?
-Os dois tem conversinhas picantes no registro da emissora. Já passei as informações para um disquete. Pode ver, se quiser.
-Isso não ajuda em nada nos planos, Gustavo. Que diabos isso tem a ver o envolvimento de Abel com nosso propósito.
-Parece que você tem os pensamentos lentos demais.
-Não estou entendendo o que quer dizer.
-Em poucos dias Laly será desmascarada.
-Com sua eficiência quem será desmascarado é você.
-Continue me destratando e eu a excluo do plano.
-Que seja!Só espero não estar perdendo meu tempo com você.
-Digo-lhe o mesmo.
Gustavo coloca o disquete na torre do computador de Edílson e eles lêem as conversas de Abel e Fer:
-Me joga na parede e me chama de lagartixa. – debocha Gus – O baixinho faz propaganda enganosa...
-Isso não me interessa...
Eleonora procura algum dado realmente relevante para desencadear boas idéias e é então que percebe o quanto o casal faz menção a Judy Pankekinha.
-Ter Judy como amiga inspira qualquer um. Perae Gustavo... Calma aí... – lê – Como vai Judy? (Abel) Ta aqui assistindo clipes com Lílian. (Fernanda) - para Gus – Judy só pode ser a identidade secreta de Laly, não?
-Demorou pra se tocar, não?
-E o que você pretende fazer?
-Eu já fiz.
-Que diabos é?
-Ninguém jamais se esquecerá do casamento de Gilberto Gallardo.
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