Eu não consegui continuar aquele discurso. Sentia-me um fracasso diante de todos os meus colegas. Todos, mesmo com os recorrentes problemas enfrentados pela juventude como um todo, tinham alguém torcendo por eles naquela plateia. Eu não tinha ninguém por mim. Ninguém mesmo. Eu tinha todos os motivos para chorar e tentava sorrir, com o pouco que eu tinha, sorrindo para mim mesma, sempre. Sorrindo para não ser taxada de covarde. Eu sorria para que a vida sorrisse para mim também, já que somos um reflexo do que fazemos e sentimos, mas juro que não deu pra continuar.
Instrumental de Ordinary world. Laly se senta no gramado da escola e fecha os olhos. Nesse momento sente saudades da mãe e não sabe como controlar a tristeza, sobretudo porque a profunda reflexão que a ajudou a escrever, também lhe abriu feridas que insistem em fechar. Nem tudo é tão 'lindo' quanto parece.
Música Flores (acústico) - Titãs & Marisa Monte.
Eleonora está varrendo a casa. Os bilhetes da formatura continuam em cima da bancada. Eleonora
os vê e não dá atenção.
-Eleonora. - Edílson grita lá da sala
-Que é, homem? - Eleonora também responde aos gritos
Eleonora esconde os bilhetes. Edílson entra na cozinha.
-Tínhamos algo pra
fazer hoje?
-Até onde
sei, não. - responde a megera, sem compaixão pela enteada
Edílson coça a cabeça.
-Pois eu tive a
breve impressão de que Lalinha nos convidou para a formatura dela. É hoje não
é?
-Não me lembro de
ela ter dito nada. Aquela lá mais vive fora de casa do que aqui; nem dará nossa
falta.
Música Dove - Moony.
Eu não podia me deixar abalar. Enxugar as lágrimas, respirar fundo e continuar fingindo que sou a garota mais feliz do mundo.
-Você devia saber que seu pai não viria, Lalinha. - Iury inutilmente tentou me consolar
-Pensei que viria... Todos os pais vieram... - respondi
-Não deixa isso arruinar seu dia, Laly. Não é todo dia que a gente se forma. - Nilton, contente, estava dançando até sem melodia
Ninguém jamais me entenderia. Falariam sem saber, tentariam se colocar em meu lugar, me fazer parar de chorar, mas jamais saberiam o que se passava em meu íntimo. Ninguém saberia o que é crescer sem o apoio da mãe, sem a figura feminina da casa sendo uma referência para você. Não, você não pode entender.
Aos 6 anos tive a infelicidade de perder Ingrid, minha amada mãe. Acho que quando ela morreu, levou meu pai junto.
Eleonora, minha madrasta, era uma verdadeira víbora. Diante de meu pai fingia me tratar com gentileza, mas bastava que Edílson virasse as costas para ela mostrar quem realmente era. Minha sorte foi eles nunca terem conseguido ter mais filhos.
Ganhava medalhas de honra ao mérito todos os bimestres e meu pai nunca se importou. Se eu aparentasse estar com dificuldades, me dizia que herdei o gênio ruim de minha mãe. Sempre gostei muito de ser parecida com Ingrid. Meus parentes costumavam me dizer que era idêntica a minha mãe e isso sempre me soou como elogio.
Desde muito menina imaginava o fim do Ensino Médio como minha fuga. Pretendia estudar em Curitiba e lutar para ser jornalista. Apesar de ser extremamente apaixonada por Iury, casamento não estava no script da protagonista e isso não me tornava menos mulher que as outras.
Nós e as tias da comunidade unimos nossas forças e promovemos um café colonial para arrecadar verbas destinadas a pagar as contas da instituição pra que esta não feche as portas.
Apesar de simplória, nossa escola era considerada um bom exemplo no estado porque o ensino ofertado era de qualidade e grande maioria dos estudantes conseguia entrar na universidade e eu, é claro, desejava como nunca fazer parte dessa estatística...
Tinha tanta comida gostosa que ficava difícil só olhar: Nilton que o diga... Dessa vez admito que ele não estava sozinho.
Depois do café, o Iury deixamos a Naira e o Nilton conversarem e ficamos namorando em frente ao colégio porque não queria voltar tão cedo pra casa...
Infelizmente, os pais do Iury passaram por lá pra buscá-lo porque desejavam que ele descansasse bastante pra fazer o vestibular na tarde do dia seguinte, então pensei em dar uma volta pela orla e até em visitar a Mili porque ela estava muito melancólica e ninguém sabia o porquê de tanta tristeza...
Estranhei o carro do Gustavo estacionar tão rapidamente depois do Iury ir embora porque pelas contas, ele, que estudava em Curitiba, voltaria pras festas de fim de ano...Só ele pra achar graça naquela buzina bizarra e barulhenta...
Até o jeito que Gustavo assobiava me irritava.
-Ei, você não ia
voltar só pro Natal? - perguntei, tentando aparentar algum interesse no que
dizia
-Não ta feliz por
me ver, né?
-Não, não. É
que...
-Entra aí. Vou te
levar pra casa.
-Não to pensando
em ir pra casa agora não. Eu ia... ver a Milene...
-Deixa de ser
orgulhosa e entra aí, princesinha. Você sabe que eu movo céus e terra por você.
Entrei, coloquei o cinto de segurança e Gustavo, a
fim de criar intimidade, sintonizou em minha estação de rádio favorita. Por
mais que as músicas estivessem boas, sua presença não me agradava porque de
alguma forma eu sentia falsidade naqueles elogios todos.
-Você nem imagina
por que voltei antes para Guaratuba.
-Pra convidar todo
mundo a comparecer em sua formatura?
-Sim e não.
-Como assim?
-Você é muito
inocente, Lalinha. Como não percebe?
-Perceber o quê?
-Nesses anos todos
eu só consegui pensar em nós dois. Resolvi voltar antes para oficializarmos
nosso noivado a todos da cidade...
-Gustavo, eu tenho
namorado.
-Termine com ele.
-Não, Gustavo. Não
posso fazer isso...
-Achei que
representasse algo de importante pra você.
-Gostaria de te
corresponder, de ser essa princesa que você acha que eu sou, mas me desculpe...
Não posso continuar com isso...
Gustavo sempre conseguia tudo que queria. Pensava
que comigo não seria diferente. Isso, sinceramente, me deixava bastante assustada.
-Se me amasse,
respeitaria minhas decisões...
-E respeito...
-Então deixe de
ser egoísta e saiba que eu também tenho planos.
-Eu sei disso,
Lalinha.
-Gostaria que
alguém arruinasse seus sonhos?
-Mas é claro que
não...
-Pois é isso que
ta fazendo comigo, não sabia? Você ta se esquecendo de dois fatos
importantíssimos. Primeiro: eu sou compromissada e amo o Iury mais do que tudo
nessa vida e segundo: quero fazer faculdade. Não penso em me casar, ter
filhos... Eu só tenho 18 anos de idade...
-Laly, jornalismo
é um curso concorridíssimo. Entendo que seja a melhor aluna da classe, que seja
esforçada, mas é melhor garantir um bom futuro se casando, mas não com aquele
pobre coitado. Olha quem eu sou e olha quem ele é. Você é uma princesa e merece
viver como uma. Casando-se com o Iury, no máximo, vocês conseguem um lugarzinho
debaixo da ponte.
-Espero que um dia
engula tudo que ta dizendo.
-Eu sei que pode
parecer cruel, Lalinha, mas é a realidade. Você é uma garota pobre e por mais
que sonhe, não pode realizar.
-Quem disse isso?
-Todos sabem...
-Você diz isso
porque não sonha.
-Como não? Claro
que eu sonho...
-Eu não quero ser
a razão dos seus sonhos, Gustavo. Essa sua obsessão doentia já extrapolou todos
os limites toleráveis.
-Laly, me deixe
plantar em você o fruto do nosso amor.
-Você não vai
plantar nada porque eu vou sair desse carro agora. Para esse carro.
-Lalinha, para de
fazer doce.
Gus bem que tentou roubar um beijo, mas desviei o
rosto e ameacei abrir a porta. Gustavo pisou no acelerador e por pouco não
acertou um carro que estava parado no semáforo.
Ali, perto da orla, o veículo estacionou e minha
vontade era sair correndo e contar ao mundo todo que Gustavo não valia o que
comia, porém o tempo chuvoso não favoreceu meu desejo e a única alternativa
restante era bastante simples, mas eficaz.
-Me leva pra casa?
-Tudo bem...
Quando respirei fundo pensando que enfim iria
pra casa tomar um banho e me resignar em meu dormitório, o mauricinho passou a
mão boba em minhas coxas e tal comportamento fez com que me sentisse um lixo,
uma vagabunda qualquer e então, sem nem pensar, desfilei um forte soco em seu
olho direito.
E CONTINUA!!!
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