A Parada Gay!
Gilberto repele quaisquer intenções de Iury repreendendo Lílian.
-Não se deve falar com estranhos.
-Ele não é estranho, vô. Não se lembra dele?O doutor que me atendeu?
-Não importa!Ele é estranho!
-Parece que não gosta dele.
-Não.
-Por que?
Gilberto dá meia-volta e Lílian o segue sem entender por que o avô se exaltou repentinamente.
Som: Trouble – Coldplay.
Como prometido, fui visitar May e já encontrei Pepo correndo pela casa.
-Quanto pique, guri. – afaguei a cabeça do meu afilhadinho
-Pepo não para nunca. - assentiu Mayra
-Saudades dos tempos de criança.
-Nem me fala.
Meu pai e Eleonora continuavam morando na mesma casinha mequetrefe de quase 30 anos atrás e ainda não tinham filhos, muito menos animais de estimação. Viviam tranquilamente, se era possível haver calmaria dividindo o mesmo teto com Eleonora, mas meu velho devia estar satisfeito, tanto que abriu mão de mim ainda com 6 anos para ser devoto a ela.
Isso sempre me machucou muito e talvez por isso mesmo sempre procurei em meus namorados uma compensação pelo amor que nunca tive.
-Por que Abel não veio junto?
Eu deveria estar preparada para responder a essa pergunta, mas não estava. Improvisava, assim como o baixinho cafajeste que me fez perder a cabeça.
-Abel está muito ocupado com o projeto de aniversário de 25 anos da revista.
-Estão se falando?
-Ah sim... Todo dia.
-Mas não é a mesma coisa que ver pessoalmente, né?
-A gente já se separou outras vezes.
Aquela era a segunda vez que ficávamos realmente separados. Nunca chegamos a brigar feio. Discutíamos às vezes, mas nada de muito sério. Abel detestava picuinhas, cenas ridículas de ciúme. DR era a pavorosa sigla que o fazia ter dor de barriga e um motivo a mais para fazer hora extra.
-Nilton e eu nunca nos separamos.
-Mas vocês namoraram a distância, não namoraram?
-Ah sim... Sim...
-A May deu o primeiro beijo no dia da festa de 15 anos. Parecia até filme.
Fernanda podia até ter se decepcionado no amor, entretanto, não deixava morrer o espírito romântico que ainda sobrevivia.
-Foi bem bonito mesmo, Lalinha. É uma pena que você não estava aqui.
-Nilton entregou a carta que te mandei?
Mayra saiu do recinto e voltou algum tempo depois com a carta protegida por um plástico. Me emocionei por saber que alguém ainda se importava comigo.
-Quando estou muito mal sempre a leio. Quase tudo que você disse se aplicou a mim de verdade, amiga. Você estava muito inspirada.
-Mas o que deu em Nilton de te beijar?Ele não amava a Naira?
-Eu realmente não sei, até porque também fui apanhada de surpresa. No começo eu não gostava tanto, então por uns meses trocamos muitas cartas porque ele foi estudar em Curitiba e eu ainda morava com a mãe.
-Você sofreu?
-Pra falar a verdade um pouco sim, mas ele sempre vinha pra cá nos feriados e passou as férias de julho, visitamos a Aimée ainda em vida e o que me fez amá-lo foi o modo como passei a me sentir linda, especial, importante. Desencanei desse negócio de tempo quando entendi que existe um alguém pra cada um e tudo só acontece quando você, de alguma forma, está pronto pra isso e eu devia estar porque tudo ao lado dele foi mágico, incrível. Trocamos confidências, beijamos bastante e ele encontrou alguém que não se importava com o fato de ele ser gordinho, até porque você sabe que eu adoro comer e ele queria alguém que o acompanhasse em seus programas gulosos. Quando dei por mim, aconteceu...
-Com 15 anos?
-Pensei que não seria nunca. Foi meio esquisito porque eu estava muito nervosa, mas ele sempre foi tão respeitador, carinhoso, descontraído, me deixando a vontade para falar sobre tudo, sem essa de ‘assunto proibido’ e acabamos por tentar outras vezes.
-Aí não parou mais. – brincou Fernanda
-Pepo sempre foi muito apressadinho e quis vir ao mundo mais cedo, mas tenho certeza de que ele foi o maior e melhor presente que Deus já me deu. Eu amo o Pepo mais do que tudo no mundo. Pepo é meu bebê, meu xodó, meu amor, minha vida. Não sei o que seria de mim se Pepo não existisse.
-Eu já perdi as esperanças de ser mãe.
-Não diz isso, Laly. Hoje em dia com todos os avanços na área da genética só não tem filho quem não quer,
Eu ainda não me sentia pronta para contar a May que fui enganada por 6 anos e estava profundamente irritada com o fato de Fernanda querer me arrastar para uma Parada Gay em pleno domingo de TPM. Era o fim.
-Lá vai tocar música legal, vai ter fervo, gatinhos, drags estilosas, birita... Ah Laly, diz que vai...
-Até eu estou pensando em ir. Muitos clientes meus estarão por lá.
-Viu só, Lalinha?Até a May vai.
Som: Fogo – Capital Inicial.
Iury está sentado no meio-fio da Avenida Beira-Mar e é indiferente a agitação que o rodeia porque está deslumbrado olhando a fotografia do Show de Talentos a qual, além de poder ver Lílian, tem a honra de rever Lalinha.
-As duas mulheres da minha vida unidas sem saber. Lílian e sua doçura, personalidade forte, atitude, feitiço que me faz lembrar de Lalinha... Como o tempo te fez bem. Que o tempo tenha apagado sua dor. Nunca quis causá-la. Se te feri, hoje voltaria com o que sei para jamais te fazer chorar. Porém, se não tivesse visto meu amor passar pela maior prova de fogo, não veria nascer meu outro amor e por mais longe que esteja, a sinto por perto. Um pedaço de mim, uma parte de mim que nem ao menos sabe quem sou e se souber, provavelmente não me perdoará.
Som: Don’t say goodbye – Paulina Rubio.
Não era meu plano para aquele domingo. Jamais seria. Jamais estava em meus ideais passar a tarde seguindo um trio elétrico, porém Fernanda sempre me faz cúmplices de suas doidices. Rendo-me incondicionalmente ao encanto geminiano de ser.
A música ambiente era agradável. A magia das pistas, o calor humano, a maneira criativa de protestar sem violência contra o preconceito que muitas vezes não nasce dos outros e sim no nosso próprio autojulgamento.
Fernanda e seus passos frenéticos, sua criança interior em ação e eu inevitavelmente me sentia obrigada a rir da situação.
May parou para conversar com clientes enquanto eu fingia estar me sacudindo para não atrapalhar a passagem.
-Cerveja? – uma drag me ofereceu uma latinha
-Não, obrigada.
Quando era Judy Pankekinha fui a muitas Paradas Gays e inclusive cantava seminua em cima do trio elétrico sem um pingo de medo e pudor. Não temia rever conhecidos ou ser criticada. E como eu era. De repente, me dei conta do quanto o mundo era pequeno e eu zelava por minha reputação. Claudio não tinha mais nada de melhor para fazer?
Som: Flores (acústico) – Titãs & Marisa Monte.
Edílson está sentado no sofá da sala tentando assistir futebol, mas Eleonora, sentada com uma cadeira em frente a janela, debocha.
-Esse mundo é mesmo pequeno.
-Pequeno não é, mas pelo seu tom de voz, ta vendo coisas por demais nessa janela.
-Adivinha quem voltou pra cá?
-Soube da Parada Gay, meu bem. Algum problema?
-A desgraçada voltou pra cá.
-Qual delas?
-Como qual?A Laly!
-Laly está na cidade?
Som: In the music – Deep Swing.
-Você parece irmã da Judy Pankekinha. – um traveco falou
-Engano seu. Não a conheço.
Seis anos antes eu rebolaria e iria deixá-lo beijar, escrever e fotografar no meu bumbum marumbado e bronzeado, mas mais doloroso que ser Lalinha era viver à sombra de outro personagem.
-Desinibe, Lalinha.
Fernanda dançava alegremente pela avenida. May, mesmo casada, a acompanhava. Será que havia algo de errado comigo?
-Lalinha!
A voz nasalada e escandalosa era de Mário.
Sim!Aquele namorado evangélico com quem Fer perdeu a virgindade aos 15.
-Mário? – Fer abriu os braços
-Fernandoca!Que bom te ver!
Fernanda e Mário tornaram-se grandes amigos. Mamá estava tão tomado pelos gritantes tons de rosa que só o reconheci porque pouco antes Fernanda cochichou em meu ouvido.
Percebo que estou envelhecendo quando ouço na rádio regravações de músicas que embalaram meus sonhos adolescentes. Aliás, síndrome dos 3.0 estava me tirando o sono.
A avenida estava pequena para o arco-íris que a enfeitava. Sentia-me indigna diante daquela gente tão sofrida, mas tão segura de si e me perguntava que diabos estava fazendo ali.
Fer e May estavam a vontade e eu não queria estragar a alegria delas nem a de ninguém. Eu só queria me resguardar de todo aquele som alto, de um sonho que não me pertencia.
O carro dos paramédicos seria só um detalhe a mais se não fosse pelo instante que me tirou o fôlego. Nem havia caminhado tanto assim. Como pode se passar tantos anos e ainda assim uma pessoa conseguir levá-la às lágrimas com apenas um olhar?
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