20º
Capítulo
Aquela cena é
tradicional ali na região, só que em papeis invertidos. A mãe chora pelo filho.
A música Desculpa mãe do Facção Central é o tema de fundo dessa cena, embora
Ferradura não esboce nenhum tipo de sentimento ao ver a mãe morta.
As portas do
rabecão se fecham. Ferradura apenas coloca as duas mãos dentro do bolso e fita
o automóvel levando embora para sempre a única pessoa que ainda lhe dava um
voto de confiança.
Margareth era
uma mulher muito querida nas redondezas, então a diretoria de uma escola
municipal cancela as aulas no turno da tarde e no outro dia para que todos se
despeçam da merendeira que prestou honrados serviços até o último dia de sua
vida.
As crianças se
entristecem muito, os colegas de trabalho também. Todos sabem que Margareth
travou uma verdadeira batalha para tentar tirar Ferradura do vício. Perdeu, é o
que diriam os pessimistas. Que não seja assim. Que a luta não tenha sido inteiramente
em vão, se concluir. Ferradura tem plena consciência de seus atos, gosta da
vida que leva, ainda que isso cause sofrimento aqueles que o amam. Poucos, que
sejam. Verdadeiros, sim. O que mais importa.
Escola
municipal. Quadra. Interior. Noite.
O corpo de
Margareth é liberado no final da tarde e ela é velada durante a noite. Muitos
conhecidos passam por lá, inclusive Marcelo que encontra o amigo parado próximo
a trave do gol e solidário como sempre vai abraça-lo. Mesmo que o skatista seja
frio, Marcelo o compreende porque cada um sente a perda de um modo, mas sente.
Marcelo – Sinto muito
mesmo, amigo. Que o Senhor Jesus receba a D. Margareth com honrarias de
heroína...
Ferradura assente
com a cabeça para ver se cai alguma lágrima, por mais falsa que seja.
Ferradura – E ela era
mesmo. – respira fundo – Se eu sou o que sou é por causa dela.
Marcelo – Pede forças
pra Deus, meu amigo.
Ferradura – Eu não tenho
força, Marcelo. Nenhuma.
Marcelo – Então pede
pra Jesus te dar forças nesse momento difícil... Ore, se ajoelhe, peça uma
direção... Ninguém ta livre do sofrimento, mas só através dele é que podemos
nos aproximar mais de Deus e entender os propósitos que Ele tem pra cada um de
nós...
Ferradura (dissimulado) –
Quando a encontrei já não havia mais nada o que fazer por ela. Me senti um
impotente vendo minha mãe morrer e não poder fazer nada...
Marcelo (conforta o amigo) –
Ela estará em um lugar bem melhor que aqui, meu amigo. Sei que é muito difícil
contar com amigos verdadeiros nesse momento de tribulação, mas saiba que as
portas da minha casa estão e sempre estarão abertas pra você.
Ferradura (corresponde ao abraço de Marcelo, mas
pensa) – Você é muito tonto mesmo, zé ruela. Eu
armando tudo pra roubar tua gatinha e você me consolando. ‘Cê’ é uma banana
mesmo...
Casa de
Karinna. Cozinha. Noite.
Karinna
conversa com Vinicius pelo telefone.
Karinna – Morreu de
desgosto, com certeza. Aguentou muito desaforo desse traste. Que Deus realmente
a tenha.
Pedro apenas
ouve a conversa.
Karinna – Pela mãe dele
eu até iria, Vini, mas agora vamos ver se ele começa a pagar por tudo que
faz... Então até mais, tchau!
Karinna volta
a se alimentar.
Pedro – O que houve
com a mãe do seu amigo?
Karinna – Amigo? Ferradura
não é amigo de ninguém. – relata – A mãe dele enfartou de desgosto na madrugada
de ontem.
Pedro – Problemas com
as drogas?
Karinna – Viciado maldito.
Só faltou sequestrar a própria mãe pra custear o vício. A D. Margareth não
merecia o filho que tinha. Não mesmo. – dá um muxoxo - Não dá pra esperar nada
de um homem que espanca a própria mãe...
Casa de Laura.
Cozinha. Noite.
Laura janta
com os pais. Em silêncio. Amauri o quebra.
Amauri – Pois bem,
Laura, falou com seu namorado?
Laura – Falei sim...
E ele gostou muito da ideia de vir aqui no domingo depois da igreja.
Zélia – Vive com a
consciência pesada, né? Apronta muito.
Laura – Pelo menos
ele vai à casa de Deus com o coração aberto, reconhecendo que é pecador, ao
contrário dos que se dizem católicos, mas só procuram Deus quando estão doentes
ou pobres.
Zélia – E que maldita
igreja é essa que deixa noiado entrar?
Laura – De maldita
essa igreja não tem é nada. É muito bendita, aliás, eu também vou lá sempre que
posso. Aos olhos de Deus somos todos iguais.
Zélia (com ar de deboche, pouco caso) –
Nunca foi de ir à missa.
Laura – Mas os cultos
do Pastor Manuel são extraordinários.
Zélia (com asco) – Culto?
Não me diga que virou crente?
Laura – Sou cristã,
mãe.
Amauri – Não foi ele
que te obrigou a ir nessa igrejinha, foi?
Laura – Eu fui porque
quis e lá eu encontrei muitas respostas que procurava. Lá eu me encontrei
espiritualmente, me senti bem tratada e estou aprendendo não só sobre a Bíblia,
mas sobre mim mesma, sobre um Deus muito bom que não discrimina nenhum filho,
por mais imperfeito que seja.
Zélia – Igreja
pra mim só é a católica.
Amauri (para
Laura, ainda incrédulo) – Você foi batizada católica.
Laura – Porque
sou filha de pais católicos, o que não quer dizer que eu serei também.
Zélia – Pois nessa
casa todos somos católicos.
Laura – Eu não tenho
nada contra, mãe, mas os cultos do Pastor Manuel são muito fortes... Você chega
a chorar porque o Espírito Santo sempre tem uma mensagem...
Zélia – Espírito Santo
que eu saiba é aquele estado lá no Sudeste e até onde eu sei, ele não fala com ninguém.
Laura (sacando a ironia da mãe) –
Já vi que você não quer ouvir nada além da sua própria voz, então eu não vou
perder tempo nem lágrimas tentando fazer com que você me entenda.
Laura empurra
o prato e sai da mesa.
Zélia (forçando uma risada) –
Essa do Espírito Santo foi engraçada. Não achou, Amauri?
Amauri – Desse jeito
você só se faz afastar da Laura.
Zélia – Laura não
sabe o que diz.
Casa de Laura.
Quarto de Laura. Noite.
Música Minha
voz – Alma D’Jem. Laura está olhando o céu pela janela. É outra
noite bonita, nem quente nem fria. As estrelas resplandecem a esperança que a
garota deseja não perder. Dificilmente.
Fechando os
olhos e deixando as lágrimas caírem, Laura tenta não se deixar ferir pelas
ofensas de Zélia. Até que ouve a voz de Marcelo. Ao virar-se de costas, se
lembra de que deixou a tv programada para ligar quando começasse o programa
semanal dos skatistas na TV Comunitária.
TV
Comunitária. Estúdio 2. Interior. Dia. (quando a atração foi gravada)
Marcelo está posicionado no
estúdio fitando a câmera de modo que possa `olhar diretamente` para o
telespectador. No Chroma Key se tem a
impressão de que o skatista está na pracinha dos skatistas. É um efeito fácil
de fazer, uma grande evolução ao que se diz respeito à TV Comunitária.
Marcelo (para o telespectador) –
A fé, essa palavra tão pequenininha, é a distância entre você e Deus. Não
importa qual religião você siga, desde que você carregue no seu pensamento a
bondade. É ela que vai te libertar, não importa qual seja sua opção sexual, a
cor da sua pele. Deus não vê nada disso, apenas o que ta no seu coração. Jesus
pode morar aí com você, desde que você deixe as portas pra Ele entrar e essa
decisão tem que partir de você, só de você...
Casa de Laura.
Quarto de Laura. Noite.
Laura, sentada
no chão com as pernas dobradas, segura seu caderno no colo, uma caneta azul e
se permite sentir as palavras de Marcelo naquele momento.
Casa de
Ferradura. Sala. Noite.
Mayara, um das
irmãs mais novas de Ferradura, não se conforma nem um pouco com o falecimento de
Margareth, tampouco com o exacerbado cinismo do primogênito da família e quando
eles vão pra casa trocar de roupa e tomar banho, a moça o coloca contra a
parede, ainda que satisfações não tragam a mãe de volta.
Mayara – Foi cheirar
ontem, não foi?
Ferradura – Fui, e daí? O
que vai fazer?
Mayara (histérica, em estado de negação) –
Viciado filho da puta... – apontando na direção do irmão – Você é quem devia
estar num caixão.
Ferradura (sacodindo os ombros) –
Não tenho culpa se a velha era fraca. Ela já tava nas últimas mesmo...
Mayara (acusa Ferradura) –
Você acabou com a vida dela, seu desgraçado. – berra – Assassino...
Ferradura – Ah, vai à
merda, putinha. Vai cuidar do teu rabo que você ganha mais, piranha. Vai... Vai
procurar teu caminho... Pode chorar o quanto quiser porque a velha não pode
ouvir mais nada. – sem um pingo de remorso – Ta morta, isso sim... ameaça – Mas
nem pense em ficar com a casa. Pega suas trouxas e se manda, vadia.
Mayara (se faz notar) –
A casa também é minha.
Ferradura – Enquanto a
velha tava viva. Agora quem manda sou eu...
Mayara – ‘Cê’ vai pagar
por isso, cara. Deus vai te castigar... O que você fez com a mãe não se faz.
Ferradura – Deus? Deus
não existe...
Mayara – Existe e se
eu fosse você me preparava pra um castigo exemplar. Não pense que Ele não ta
vendo o que você faz porque Ele ta.
Ferradura – Falando de
Deus, piranha? Desde quando você tem moral?
Mayara – Mais moral
que você é certeza que eu tenho.
Ferradura – Moral? – com desprezo
– Moral... Vai à igreja pra caçar homem. Pensa que eu não vejo o jeito que você
se exibe pro filho do pastor? Mas nem sonha, baranga. Seu personagem não convence...
– provoca a irmã - Se você não fosse tão horrorosa, podia usar o rabo pra
ganhar dinheiro e sumir da minha vida. Nem pense que eu vou te sustentar.
Mayara – Não quero um
centavo seu. Não quero depender de você pra nada, nada... – desabafa sem
qualquer medo - Quando a mãe dizia que tinha medo de ficar na tua mão, eu não
entendia, mas agora eu vejo que todo mundo tinha razão... Que você não vale
nada. Se você ainda ta solto e vivo, dê graças a Deus pela ‘velha morta’ ter
feito muito por você, ter te safado da prisão... – esbofeteia Ferradura – Hoje você
triunfa, enterra a ‘velha’, mas não se vanglorie porque as regras do jogo podem
mudar e se voltar contra você.
Ferradura não
se compadece com a dor da irmã e a expulsa de casa apanhando pelos braços, a
chutando para fora do portão como se ela fosse à bandida.
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