sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

Resistência - 20º Capítulo



20º Capítulo

Aquela cena é tradicional ali na região, só que em papeis invertidos. A mãe chora pelo filho. A música Desculpa mãe do Facção Central é o tema de fundo dessa cena, embora Ferradura não esboce nenhum tipo de sentimento ao ver a mãe morta.

As portas do rabecão se fecham. Ferradura apenas coloca as duas mãos dentro do bolso e fita o automóvel levando embora para sempre a única pessoa que ainda lhe dava um voto de confiança.

Margareth era uma mulher muito querida nas redondezas, então a diretoria de uma escola municipal cancela as aulas no turno da tarde e no outro dia para que todos se despeçam da merendeira que prestou honrados serviços até o último dia de sua vida.

As crianças se entristecem muito, os colegas de trabalho também. Todos sabem que Margareth travou uma verdadeira batalha para tentar tirar Ferradura do vício. Perdeu, é o que diriam os pessimistas. Que não seja assim. Que a luta não tenha sido inteiramente em vão, se concluir. Ferradura tem plena consciência de seus atos, gosta da vida que leva, ainda que isso cause sofrimento aqueles que o amam. Poucos, que sejam. Verdadeiros, sim. O que mais importa.


Escola municipal. Quadra. Interior. Noite.

O corpo de Margareth é liberado no final da tarde e ela é velada durante a noite. Muitos conhecidos passam por lá, inclusive Marcelo que encontra o amigo parado próximo a trave do gol e solidário como sempre vai abraça-lo. Mesmo que o skatista seja frio, Marcelo o compreende porque cada um sente a perda de um modo, mas sente.

Marcelo – Sinto muito mesmo, amigo. Que o Senhor Jesus receba a D. Margareth com honrarias de heroína...

Ferradura assente com a cabeça para ver se cai alguma lágrima, por mais falsa que seja.

Ferradura – E ela era mesmo. – respira fundo – Se eu sou o que sou é por causa dela.
Marcelo – Pede forças pra Deus, meu amigo.
Ferradura – Eu não tenho força, Marcelo. Nenhuma.
Marcelo – Então pede pra Jesus te dar forças nesse momento difícil... Ore, se ajoelhe, peça uma direção... Ninguém ta livre do sofrimento, mas só através dele é que podemos nos aproximar mais de Deus e entender os propósitos que Ele tem pra cada um de nós...
Ferradura (dissimulado) – Quando a encontrei já não havia mais nada o que fazer por ela. Me senti um impotente vendo minha mãe morrer e não poder fazer nada...
Marcelo (conforta o amigo) – Ela estará em um lugar bem melhor que aqui, meu amigo. Sei que é muito difícil contar com amigos verdadeiros nesse momento de tribulação, mas saiba que as portas da minha casa estão e sempre estarão abertas pra você.
Ferradura (corresponde ao abraço de Marcelo, mas pensa) – Você é muito tonto mesmo, zé ruela. Eu armando tudo pra roubar tua gatinha e você me consolando. ‘Cê’ é uma banana mesmo...

Casa de Karinna. Cozinha. Noite.

Karinna conversa com Vinicius pelo telefone.

Karinna – Morreu de desgosto, com certeza. Aguentou muito desaforo desse traste. Que Deus realmente a tenha.

Pedro apenas ouve a conversa.

Karinna – Pela mãe dele eu até iria, Vini, mas agora vamos ver se ele começa a pagar por tudo que faz... Então até mais, tchau!

Karinna volta a se alimentar.

Pedro – O que houve com a mãe do seu amigo?
Karinna – Amigo? Ferradura não é amigo de ninguém. – relata – A mãe dele enfartou de desgosto na madrugada de ontem.
Pedro – Problemas com as drogas?
Karinna – Viciado maldito. Só faltou sequestrar a própria mãe pra custear o vício. A D. Margareth não merecia o filho que tinha. Não mesmo. – dá um muxoxo - Não dá pra esperar nada de um homem que espanca a própria mãe...

Casa de Laura. Cozinha. Noite.

Laura janta com os pais. Em silêncio. Amauri o quebra.

Amauri – Pois bem, Laura, falou com seu namorado?
Laura – Falei sim... E ele gostou muito da ideia de vir aqui no domingo depois da igreja.
Zélia – Vive com a consciência pesada, né? Apronta muito.
Laura – Pelo menos ele vai à casa de Deus com o coração aberto, reconhecendo que é pecador, ao contrário dos que se dizem católicos, mas só procuram Deus quando estão doentes ou pobres.
Zélia – E que maldita igreja é essa que deixa noiado entrar?
Laura – De maldita essa igreja não tem é nada. É muito bendita, aliás, eu também vou lá sempre que posso. Aos olhos de Deus somos todos iguais.
Zélia (com ar de deboche, pouco caso) – Nunca foi de ir à missa.
Laura – Mas os cultos do Pastor Manuel são extraordinários.
Zélia (com asco) – Culto? Não me diga que virou crente?
Laura – Sou cristã, mãe.
Amauri – Não foi ele que te obrigou a ir nessa igrejinha, foi?
Laura – Eu fui porque quis e lá eu encontrei muitas respostas que procurava. Lá eu me encontrei espiritualmente, me senti bem tratada e estou aprendendo não só sobre a Bíblia, mas sobre mim mesma, sobre um Deus muito bom que não discrimina nenhum filho, por mais imperfeito que seja.
Zélia – Igreja pra mim só é a católica.
Amauri (para Laura, ainda incrédulo) – Você foi batizada católica.
Laura – Porque sou filha de pais católicos, o que não quer dizer que eu serei também.
Zélia – Pois nessa casa todos somos católicos.
Laura – Eu não tenho nada contra, mãe, mas os cultos do Pastor Manuel são muito fortes... Você chega a chorar porque o Espírito Santo sempre tem uma mensagem...
Zélia – Espírito Santo que eu saiba é aquele estado lá no Sudeste e até onde eu sei, ele não fala com ninguém.
Laura (sacando a ironia da mãe) – Já vi que você não quer ouvir nada além da sua própria voz, então eu não vou perder tempo nem lágrimas tentando fazer com que você me entenda.

Laura empurra o prato e sai da mesa.

Zélia (forçando uma risada) – Essa do Espírito Santo foi engraçada. Não achou, Amauri?
Amauri – Desse jeito você só se faz afastar da Laura.
Zélia – Laura não sabe o que diz.

Casa de Laura. Quarto de Laura. Noite.

Música Minha voz – Alma D’Jem. Laura está olhando o céu pela janela. É outra noite bonita, nem quente nem fria. As estrelas resplandecem a esperança que a garota deseja não perder. Dificilmente.

Fechando os olhos e deixando as lágrimas caírem, Laura tenta não se deixar ferir pelas ofensas de Zélia. Até que ouve a voz de Marcelo. Ao virar-se de costas, se lembra de que deixou a tv programada para ligar quando começasse o programa semanal dos skatistas na TV Comunitária.

TV Comunitária. Estúdio 2. Interior. Dia. (quando a atração foi gravada)

Marcelo está posicionado no estúdio fitando a câmera de modo que possa `olhar diretamente` para o telespectador. No Chroma Key se tem a impressão de que o skatista está na pracinha dos skatistas. É um efeito fácil de fazer, uma grande evolução ao que se diz respeito à TV Comunitária.

Marcelo (para o telespectador) – A fé, essa palavra tão pequenininha, é a distância entre você e Deus. Não importa qual religião você siga, desde que você carregue no seu pensamento a bondade. É ela que vai te libertar, não importa qual seja sua opção sexual, a cor da sua pele. Deus não vê nada disso, apenas o que ta no seu coração. Jesus pode morar aí com você, desde que você deixe as portas pra Ele entrar e essa decisão tem que partir de você, só de você...

Casa de Laura. Quarto de Laura. Noite.

Laura, sentada no chão com as pernas dobradas, segura seu caderno no colo, uma caneta azul e se permite sentir as palavras de Marcelo naquele momento.

Casa de Ferradura. Sala. Noite.

Mayara, um das irmãs mais novas de Ferradura, não se conforma nem um pouco com o falecimento de Margareth, tampouco com o exacerbado cinismo do primogênito da família e quando eles vão pra casa trocar de roupa e tomar banho, a moça o coloca contra a parede, ainda que satisfações não tragam a mãe de volta.

Mayara – Foi cheirar ontem, não foi?
Ferradura – Fui, e daí? O que vai fazer?

Mayara (histérica, em estado de negação) – Viciado filho da puta... – apontando na direção do irmão – Você é quem devia estar num caixão.
Ferradura (sacodindo os ombros) – Não tenho culpa se a velha era fraca. Ela já tava nas últimas mesmo...
Mayara (acusa Ferradura) – Você acabou com a vida dela, seu desgraçado. – berra – Assassino...
Ferradura – Ah, vai à merda, putinha. Vai cuidar do teu rabo que você ganha mais, piranha. Vai... Vai procurar teu caminho... Pode chorar o quanto quiser porque a velha não pode ouvir mais nada. – sem um pingo de remorso – Ta morta, isso sim... ameaça – Mas nem pense em ficar com a casa. Pega suas trouxas e se manda, vadia.
Mayara (se faz notar) – A casa também é minha.
Ferradura – Enquanto a velha tava viva. Agora quem manda sou eu...
Mayara – ‘Cê’ vai pagar por isso, cara. Deus vai te castigar... O que você fez com a mãe não se faz.
Ferradura – Deus? Deus não existe...
Mayara – Existe e se eu fosse você me preparava pra um castigo exemplar. Não pense que Ele não ta vendo o que você faz porque Ele ta.
Ferradura – Falando de Deus, piranha? Desde quando você tem moral?
Mayara – Mais moral que você é certeza que eu tenho.
Ferradura – Moral? – com desprezo – Moral... Vai à igreja pra caçar homem. Pensa que eu não vejo o jeito que você se exibe pro filho do pastor? Mas nem sonha, baranga. Seu personagem não convence... – provoca a irmã - Se você não fosse tão horrorosa, podia usar o rabo pra ganhar dinheiro e sumir da minha vida. Nem pense que eu vou te sustentar.
Mayara – Não quero um centavo seu. Não quero depender de você pra nada, nada... – desabafa sem qualquer medo - Quando a mãe dizia que tinha medo de ficar na tua mão, eu não entendia, mas agora eu vejo que todo mundo tinha razão... Que você não vale nada. Se você ainda ta solto e vivo, dê graças a Deus pela ‘velha morta’ ter feito muito por você, ter te safado da prisão... – esbofeteia Ferradura – Hoje você triunfa, enterra a ‘velha’, mas não se vanglorie porque as regras do jogo podem mudar e se voltar contra você.

Ferradura não se compadece com a dor da irmã e a expulsa de casa apanhando pelos braços, a chutando para fora do portão como se ela fosse à bandida.

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