segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

Resistência - 16º Capítulo



16º Capítulo

Os guardas municipais não mantêm uma relação nada cordial com os skatistas que frequentam a pracinha. Sim, há os mal intencionados que usam drogas, mas há também os meninos que gostam de treinar nas rampas, ouvir músicas, trocar ideias, azarar as meninas.

Os skatistas mais velhos sempre advertem os caçulas a andarem com os documentos e fugir dos noiados, manter o bom hálito, não andar de skate em ruas residenciais depois de determinado horário, respeitarem os mais velhos, tudo para que os policiais nunca tenham motivos para fichá-los porque sabem que não tem nada mais desagradável que ser mal vistos pelos pracinhas.

Como em toda corporação, sempre há aqueles que abusam do poder, como está acontecendo agora.

Aspirante – Encosta na parede, filho da puta.

O menino revistado é parecido com Adriano: esguio, ingênuo. No bolso carrega o celular e um drops de bala, nada mais.

Aspirante (arrogante, truculento) – JÁ FALEI PRA ENCOSTAR, PASPALHO. (acerta as costas do menino com o coturno) NÃO ESCUTOU, FILHO DA PUTA?

Poupando descrições, o que se vê é uma cena de pânico e terror. O alvo é um menino que se tiver 15 anos de idade é muito. Ele lembra Adriano na fisionomia, mas não é o filho de Isabel. O policial o revista como se ele fosse um traficante, abre a traseira do celular para ver se o jovem não escondia drogas no lugar da bateria, depois joga o aparelho na calçada.

Menino – ‘Cê’ quebrou meu aparelho, cara.
Aspirante (desfere um soco no rosto do menino) – Cara? Com quem você pensa que ta falando, maconheiro? (o menino está chorando) Com esse olho vermelho ainda quer dizer que é inocente, é? Pensa que eu nasci ontem? (o algema) Vai é dar um rolezinho de viatura...
Menino (de joelhos, implora) – De viatura não... Por favor...

O policial apanha o celular do menino já com a bateria no lugar e diz.

Aspirante – Bacana esse celular... Não é lá grande merda, mas minha namorada vai gostar muito...
Menino (humilhado, choroso) – Devolve meu celular. (leva outra bordoada)
Aspirante – Quem manda aqui sou eu. (saca o revólver) Não queira me ver ‘de cara’. (empurra o menino até a viatura colocando a arma contra o pescoço dele) – Agora vai dar um rolezinho de viatura. (desiste de ameaçar com a arma, guarda-a no bolso e confisca também o skate) O patinete fica comigo.
Menino (contraria o p.m.) – Não é patinete, é skate.
Aspirante (prepotente) – Grande merda. Eu chamo como quiser.
Menino – Eu sou inocente, me solta.
Aspirante – Só sai de lá na presença de um responsável.
Menino (angustiado) – Minha vó não, senhor. Minha vó ta muito doente, não incomoda ela não...
Aspirante – Quem manda ter neto noiado?

O menino é jogado dentro da viatura como um fruto podre.

Laura e os amigos presenciaram a cena. Estão estarrecidos, chocados, horrorizados, arrasados. Os olhos de Laura estão cheios de lágrimas.

Laura – Cara covarde.

Algumas equipes de tv estão no local. O mesmo aspirante que espancou um menor de idade sem qualquer piedade, diante das câmeras fala e age como um herói justiceiro da sociedade.


Casa de Laura. Interior. Noite.

Amauri e Zélia assistem ao noticiário local na hora do jantar.

Amauri – Como foi a consulta, Zélia?
Zélia – Pergunta pra nossa revoltada.
Amauri – Eu te disse que não era uma boa ideia, meu bem.
Zélia – Laura teve a petulância de destratar a Dra. Alana. Estou mesmo desconfiando que é manipulação dessa maldita baleia da Karinna.
Amauri – Laura já tem quase 15 anos, meu bem. Ela já progrediu muito, então temos que deixar que ela faça as coisas no tempo dela.

Laura entra em casa. Zélia a olha por cima do ombro.

Zélia – Até que enfim se lembrou de que tem família.
Laura – Boa noite, pai.
Amauri – Boa noite, filha. Não vai jantar?
Laura – Comi um lanchinho na rua.
Zélia – Só cuidado pra não ficar como a Karinna.

A conversa é interrompida pela própria reportagem.

Âncora (off, sensacionalista) – Policiais acabam com a farra de viciados na pracinha dos skatistas em Curitiba.

Laura assiste a matéria por curiosidade. Zélia aumenta o volume.

Zélia – Tem mesmo é que encher esses noiados de porrada e colocar na cadeia.

Um repórter está no local onde a desordem aconteceu, narrando com uma entonação tendenciosa.

Repórter – A confusão teve início após a chegada dos policiais, chamados após receberam diversas denúncias de pessoas incomodadas com a bagunça generalizada dos jovens que reagiram mal às abordagens, proferindo palavras de baixo calão contra as autoridades e intimidando os policiais com chutes e gestos obscenos. Uma moradora do prédio ao lado da praça que pediu para não ser identificada relata que não é a primeira vez que os skatistas da pracinha provocam tumulto.

Uma senhora, de costas, fala para a reportagem com a voz manipulada por algum editor de áudio. Uma legenda em amarelo traduz o que a senhora quis dizer e obviamente é material antigo sendo reaproveitado.

Moradora - Toda vida isso... A gente não tem sossego, não tem dia nem noite... Com as coisas do jeito que estão, não tem mais jeito...

A edição mostra os skatistas como viciados da cracolândia, usando na matéria imagens editadas do carnaval passado na cidade, quando aquela praça ficou totalmente coberta de lixo, desde camisinhas usadas a latas amassadas, cacos de garrafas quebradas. 

Repórter - A queixa dos moradores é sempre a da pouca fiscalização no local depois que anoitece. São queixas de furtos, algazarra, menores de idade usando drogas ao ar livre...

A cena exibida não é referente àquele dia e sim a uma briga no litoral entre dois foliões bêbados que trocam insultos e desrespeitam os policiais que tentam conter a bagunça. Para que ninguém reconhecesse, os editores de imagem embaçaram os rostos para reforçar aos telespectadores de que os skatistas são devassos, intolerantes e más influências para a sociedade como um todo.

Zélia, do sofá de casa, confia cegamente no que diz a reportagem.

Zélia - Bando de vagabundos, desocupados. Isso aí é falta de porrada. A ditadura tinha que voltar, ter policial em tudo quanto é canto pra meter medo nesses noiados.
Laura - A senhora tem noção do que está falando?
Zélia - Na época da ditadura era muito melhor. 
Laura - Melhor no quê?
Zélia - Você é muito nova, não entende nada.
Laura - Ah não, você vai me desculpar, mas por pior que seja a criminalidade no país, dizer que tudo na ditadura era melhor já é exagerar. 

Zélia ignora a filha.

Repórter (narrando a edição malfeita do incidente da tarde) – Para conter a fúria dos marginais, a polícia precisou fazer uso de cassetete e balas de borracha, entrando em confronto com os arruaceiros. Alguns, ainda assim, não se intimidaram com as câmeras e tentaram agredir as equipes de reportagem que cobriam o incidente.

A revolta dos rapazes era com a polícia, em função da horrorosa abordagem dos dois tenentes.

Repórter - Fomos hostilizados... (se acocora na calçada e apanha um pedaço de concreto para chocar o telespectador) Fomos hostilizados pelos jovens skatistas... Nós, jornalistas, cidadãos de bem, estamos sujeitos à criminalidade...

Os cortes nas imagens foram feitos a fim de mostrar à população que os skatistas são os vermes da sociedade, isentando a culpa dos PMS, os tratando como os heróis, quando na realidade eles abusam do poder nos casos, principalmente quando abordam negros, pobres, skatistas, mulheres, ofendem, espancam, extorquem e ninguém fala nada porque nem mesmo se pode.

Skatista de boné verde (no momento da revolta) – A pracinha também é nossa...

Laura está enojada com o que presencia porque sabe que as coisas não desenrolaram dessa forma. Os skatistas estavam treinando manobras quando um grupo de guardas municipais chegou fazendo uma abordagem violenta.

Repórter (sensacionalista) – Um jovem viciado foi barrado, pego em flagrante após furtar um aparelho celular. Negando-se a se submeter à revista, desacatou o policial e tentou resistir à prisão. Ele foi encaminhado para a delegacia da infância e do adolescente...

O âncora do noticiário faz uma cara péssima. A trilha do programa já denota que o apresentador Geraldo Bráulio não é nada parcial, apesar de se denominar provedor do jornalismo verdade, caberia a ele a alcunha de jornalismo sangrento, sensacionalista, tendencioso e hipócrita.

Geraldo Bráulio tem quase dois metros de altura e provavelmente mais de 120kg, tanto é que usa um paletó XXG e o mesmo não fecha. Ele faria a descrição perfeita de um daqueles vilões emblemáticos de videogames antigos, falando alto, chamando mais atenção que os crimes hediondos que cobre.

Âncora – É o fim do mundo, minha gente. É o fim do mundo. É la-men-tá-vel. É lamentável o que esses bandidos fazem. É lamentável que esses marginais... (percebe-se o ódio que ele tem dos skatistas pela entonação revoltada) Marginais, safados, bandidos, imprestáveis continuem usando a pracinha dos skatistas para fins ilícitos, para tocar o horror e coagir pessoas de bem, pessoas de família, cidadãos que pagam seus impostos corretamente para usufruírem de um bem público, um patrimônio que é de todos, que pertence a todos nós. Eles estão transformando essa pracinha numa filial da cracolândia. (ele sinaliza com o braço para que a edição divida a tela para mostrar o vídeo da abordagem do menino) Droga, furtos, viciados, lixo por todos os cantos, menores de idade furtando celulares para sustentar o vício... Põe na tela de novo aquelas imagens absurdamente chocantes, cho-can-tes, meus pais, minhas mães de família. Põe na tela pra quem não viu ou tá chegando agora. Eu não queria ter que mostrar isso, mas é inevitável, impossível. É impossível não ficar revoltado vendo de braços cruzados essa selvageria... Põe de novo pro pessoal de casa ver a abordagem, pra quem tá chegando agora... É verdadeiramente louvável a conduta desses policiais... (ele aplaude as cenas da abordagem e o efeito sonoro rouba a cena) Policial preparado sabe como agir e age em prol da maioria, da nossa sociedade já tão cansada de barbaridades, de crimes hediondos e insolúveis. Um moleque desses tem que ir pra um reformatório. Marginal. (olha com desprezo para o menino sendo levado pela viatura) Marginal.

Um carimbo vermelho destacando a palavra MARGINAL entra na tela.

Âncora - Lugar de marginal é atrás das grades. (os efeitos sonoros de aplausos são usados novamente) E os parabéns do Geraldo Bráulio vão para esses dois policiais. (as imagens dos PMS concedendo a entrevista dividem a tela com o apresentador) Esses dois rapazes são os caras. É de policiais assim que precisamos. Com sangue frio quando é preciso ter. Sangue frio e atitude, porque com noiado a tolerância é zero. Mínima. Nenhuma. (aplaude o espancamento do menino) Tem que bater, minha gente. Não é meu filho, porque eu sou um pai exemplar, mas se fosse, eu deixava que a polícia batesse. 

Zélia tem verdadeira adoração por esse apresentador. 

Zélia - Tô com o Geraldo Bráulio e não abro. Esse cara é sensacional. (ela o aplaude como se ele pudesse vê-la).

Laura está com os olhos cheios de lágrimas.

Laura - Esse verme aí não consegue nem abotoar o paletó, quem é ele pra se achar o dono da verdade?
Zélia - Ele cumpre muito bem o papel dele de informar.
Laura - Deformar... 
Zélia - Ele só mostrou a verdade. Quem odeia polícia é bandido...
Laura (protesta) - Isso que ele faz não é jornalismo.
Zélia - E você por acaso é jornalista?
Laura - Não, mas se fosse diretora de jornalismo, demitia esse sujeito hoje mesmo.
Zélia - Isso é censura.
Laura - Você mesmo não acabou de dizer que gostaria de estar nos tempos da ditadura?
Zélia - O Geraldo Bráulio fala a verdade.
Laura - A verdade dele, não a minha.
Zélia - Como se esses vagabundos que ficam por aí dando pinta de skate fossem boa coisa. Se fossem, não seriam fichados.

Laura sente-se esgotada demais para discutir com a mãe e vai para o quarto.

Zélia (comenta) – Essa aí eu desconfio de que é outra que puxe fumo.
Amauri – Laura? Por favor, Zélia, bem menos. Quando é que você vai parar de discriminar a Laura por ela não se parecer com você?
Zélia – Quando é que você vai parar de acobertar Laura?
Amauri – O dia em que você falar com sensatez. (concorda com Laura) Eu acho esse homem muito prepotente.
Zélia - É de gente como ele que a nossa sociedade precisa, gente que fale a verdade.

Casa de Laura. Quarto de Laura. Noite.

Música: Minha voz – Alma D’Jem

Laura chora deitada na cama. À margem da incompreensão, da revolta profunda.

Casa de Isabel. Quarto dos meninos. Noite.

Adriano está fazendo o dever de casa. Isabel dá uma batidinha na porta e entra no recinto.

Isabel – Assim é que eu gosto de ver.

Adriano deixa os cadernos e livros por um momento. Isabel passa o telefone para ele.

Isabel – Daiana está na linha.
Adriano – Valeu, mãe. – apanha o telefone
Isabel – Valeu, Adriano? Valeu? Cadê os bons modos?
Adriano – Obrigado, mãe.

Isabel entrega o telefone para o filho.

Isabel – Nada de passar trote, viu, senhor Adriano?
Adriano – Que isso, mãe. Eu não.
Isabel – É muito bom ter o Jonathan pra me relatar todos os seus podres, Adriano. – avisa – Vê se não demora muito, ta?
Adriano – Oi Daia... Tudo bem?

Isabel sai do quarto.

Casa de Vinicius. Quarto de Daiana. Noite.

Daiana está sentada na cama falando com o namorado.

Daiana – Esse Jonathan é um pé no saco, viu?


Casa de Isabel. Quarto dos meninos. Noite.

Adriano – Não sabe como é horrível ser filho do meio, cara. O mais velho te bate, o mais novo apronta e coloca a culpa no seu nome. Resumindo: você apanha da mãe e os dois danados tomam seu lugar no sofá.

Galpão de Marcelo. Interior. Noite.

O abuso contra um menor de idade repercutiu muito mal para os skatistas. Os que podem estão reunidos na casa de Marcelo.

Marcelo – O que a gente não pode é deixar a mídia nos marginalizar.
Bituca – Ser skatista é uma coisa, ser marginal é outra.
Ferradura – A mídia ta cagando e andando pra nós, cara. Acordem!
Bituca – Acorda você, mano. Um menor de idade foi agredido covardemente. Não dá pra ficar impune.
Ferradura – Azar o dele se passou no lugar errado na hora errada.
Karinna – Você é um filho da puta mesmo, só pensa em você, você, você. Que se foda o mundo se tiver teu baseado...
Vinicius (aperta a mão de Karinna) – Meu bem, calma...
Karinna – Esse aí consegue ser mais frio que os policiais.
Ferradura – Não pedi tua opinião, balofa.
Karinna – Me chama de balofa mais uma vez e eu te parto a cara, lazarento.
Marcelo – Galera, por favor, sem baixaria. – para Ferradura – É um menino de 14 anos, puxa vida, um moleque que ta brincando, aprendendo a andar de skate. Ele tem família. Imagina como não ta a mãe dele, o pai...
Bituca – Ele mora com a vó e até onde soube a mulher passou mal e foi pro hospital.
Vinicius – E o cara covarde saiu dando porrada assim sem nem conversar?
Karinna – Acha que ele para pra conversar? Com ele é bordoada. Não gostou? Mais bordoada, rolé de viatura e acabou-se.
Vinicius – Coitado do menino. Agora vai ficar fichado...
Bituca – Qualquer um via que aquele moleque franzino tava treinando de boa. Eu tenho como provar que ele é inocente.
Ferradura (debocha) – Como, como?
Chiquinho – Só falar de boca não vai dar em nada.
Bituca – Eu tava gravando um vídeo pro programa, aí filmei tudo...
Marcelo – TUDO?

2 comentários:

  1. Que raiva desses policiais! E da Zélia também, o jeito que ela falou da Laura.."essa aí puxa fumo também" ... A Laura é uma ótima filha.

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  2. Zélia não reconhece a filha maravilhosa que tem. :/
    Esses policiais agiram muito covardemente e o pior é que apesar de Resistência ser ficção, isso acontece bastante na realidade, como aqui em Curitiba, quando os policiais agrediram a moça, batendo ela contra a porta. Repercutiu pra caramba no Brasil inteiro no final do ano passado e da advogada negra que apanhou e foi ridicularizada... Sabe o que é pior? É que tem gente que acredita que os policiais abusados é que fazem o certo. No caso de advogada foi bem assim... :/

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